domingo, 27 de junho de 2010

A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA PARA NOSSAS VIDAS, HOJE


1 – A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO

O propósito da interpretação bíblica não é “descobrir” algo que “ninguém tinha percebido antes”.

O propósito da interpretação bíblica é chegar ao significado simples do texto. O ingrediente mais comum nessa tarefa é o senso comum iluminado pelo Espírito Santo. A boa interpretação dá bom sentido ao texto. A prova da boa interpretação é a paz que ela confere à mente e o consolo que fornece ao coração.

Todo leitor é um intérprete. Ao ler um texto, naturalmente pensamos que entendemos o mesmo. Mas será que o entendemos do modo como o escritor original desejava que fosse entendido? Estamos separados por mais de dois mil anos dos autores bíblicos. Além disso, lemos traduções da Bíblia, e toda tradução é uma interpretação.

Ao aproximar-nos de um texto, geralmente trazemos a ele tudo o que somos: nossas ideias, opiniões, preconceitos, enfim, toda a nossa visão de mundo e cultura. Algumas vezes isso nos faz colocar no texto coisas totalmente alheias a ele.

Algumas das mais terríveis heresias surgiram da interpretação errônea da Bíblia. Por exemplo, as pseudoigrejas que atualmente pregam o chamado “evangelho da prosperidade” afirmam encontrar “base bíblica” para seus ensinos em textos (como 3Jo 2, por exemplo) que nada têm a ver com prosperidade financeira.

George Ladd, teólogo batista, declarou certa vez: “A Bíblia é a Palavra de Deus dada em palavras humanas dentro da História”. A natureza da Bíblia – e o modo como a encaramos – também influencia na sua interpretação. Há os que se aproximam da Bíblia como texto sagrado, e há aqueles que se aproximam dela como um livro meramente humano, um livro religioso como outro qualquer.

Como Palavra de Deus, escrita por seres humanos, a Bíblia tem, simultaneamente, relevância eterna e particularidades históricas. O bom intérprete bíblico precisará lidar com essa tensão.

No tocante ao “lado humano” da Bíblia, há dois fatores que precisamos levar em conta no processo de interpretação:

1º. Ao falar através de pessoas reais, numa variedade de circunstâncias, durante um período de 1500 anos, a Palavra de Deus foi expressa no vocabulário e nos padrões de pensamento daquelas pessoas e foi condicionada pela sua cultura, seus tempos e suas circunstâncias. Por isso precisamos, em primeiro lugar, aprender o que a Palavra significava para seus ouvintes originais. Devemos compreender o que foi dito a eles em seu tempo e lugar; para depois aplicar seus princípios em nosso tempo e lugar.

2º. A Bíblia faz uso de uma profusão de gêneros literários diferentes: narrativa histórica, genealogias, crônicas, leis, poesia, provérbios, oráculos proféticos, parábolas, cartas, sermões, etc. É preciso levar em consideração as regras de interpretação apropriadas para cada gênero literário, e o modo como Deus os utiliza para falar conosco hoje. Por exemplo, um Salmo, que foi escrito para falar com Deus, é diferente de uma porção da Lei, que foi escrita para dirigir-se aos homens. Hoje, porém, devemos aplicar ambos em nossas vidas, e aplicá-los corretamente.

2 – AS TAREFAS DO INTÉRPRETE

2.1. PRIMEIRA TAREFA: EXEGESE

Exegese é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir seu sentido original. É fundamentalmente uma tarefa histórica. É a tentativa de ouvir a Palavra de Deus da mesma forma como a ouviram seus destinatários originais, encontrando assim a intenção original das palavras da Bíblia. Essa tarefa normalmente requer a ajuda de um pesquisador que conheça os idiomas originais da Bíblia, porém, seguindo certos passos, mesmo pessoas leigas podem fazer uma exegese.

De certo modo todos são exegetas. A questão é se são bons ou maus exegetas.

Num nível mais elevado, a exegese requer o conhecimento dos idiomas bíblicos; das culturas semítica, judaica e helenista; a determinação do texto original quando os manuscritos apresentam várias versões; o uso de todo tipo de fontes, recursos e instrumentos. No entanto, pode-se aprender a fazer exegese mesmo sem ter acesso a todas essas habilidades e ferramentas. Para tanto, deve-se primeiramente aprender o que cada um pode fazer com suas próprias habilidades. Em segundo lugar, deve-se aprender a utilizar o trabalho de outros.

A chave para uma boa exegese, e para uma leitura eficaz da Bíblia, é ler o texto com atenção e fazer as perguntas apropriadas a cada texto.

Há dois tipos fundamentais de perguntas que o leitor deve fazer: as que se referem ao contexto e as que se referem ao conteúdo. As perguntas de contexto dividem-se em duas categorias: históricas e literárias.

Perguntas de contexto.

Contexto histórico. Deve-se levar em conta a época e a cultura do autor e de seus leitores (nem sempre serão as mesmas); aspectos geográficos e políticos; a ocasião em que o texto (salmo, profecia, epístola, etc) foi escrito. Exemplo: história pessoal de Amós, Oséias, Isaías; a situação histórica na época de Ageu; as esperanças messiânicas de Israel nos ministérios de João Batista e Jesus; as características de cidades como Corinto e Filipos; etc.

Há recursos que podem fornecer ajuda para responder a essas questões: dicionários bíblicos, comentários, manuais bíblicos, livros sobre a história bíblica, entre outros.

As perguntas mais importantes no contexto histórico, no entanto, são as que se referem à ocasião e ao propósito de cada livro bíblico. Bons comentários e manuais bíblicos podem ser muito úteis neste caso, bem como algumas Bíblias de estudo.

Contexto literário. As palavras somente têm significado dentro das frases em que se encontram, e as frases, dentro das orações mais longas em que se encontram (parágrafos, trechos), e estas orações mais longas, por sua vez, encontram seu significado de acordo com as orações que as antecedem e que as sucedem. É isso o que as pessoas querem dizer quando falam de ler algo dentro de seu contexto.

As perguntas mais importantes que devemos fazer no contexto literário, em cada frase e em cada parágrafo, é: “Qual é o propósito? Qual a finalidade?”. Devemos seguir o pensamento do autor. O que o autor está dizendo, e por que está dizendo isso, em certo momento ou lugar? Depois de encontrar a resposta, questionar: O que o autor dirá a seguir? Essas sempre serão perguntas decisivas, fundamentais para a compreensão do texto bíblico. Afinal, o objetivo da exegese é descobrir a intenção original do autor. Para realizar essa tarefa, é imprescindível o uso de uma boa tradução da Bíblia, que reconheça os diferentes gêneros literários, que mostre claramente os parágrafos de uma narrativa, que saiba reconhecer uma poesia. Uma tradução da Bíblia que utiliza um parágrafo para cada versículo deve ser evitada. (Um bom exemplo de tradução que reconhece parágrafos e poesia é a Nova Versão Internacional [NVI]. Muitas pessoas nem ao menos sabem que tipo de tradução da Bíblia estão utilizando. Um leitor consciente deve conhecer as características das diversas traduções e versões bíblicas disponíveis no mercado, e então escolher a que melhor se encaixa em seu perfil e em suas necessidades. O ideal é possuir o maior número possível de versões bíblicas.)

Perguntas de conteúdo.

São as que se referem ao significado das palavras, às relações gramaticais, à seleção do texto original quando há várias versões nos manuscritos. Também leva-se em consideração perguntas referentes ao contexto histórico, como por exemplo: o significado de termos e expressões como denário, viagem de um dia de sábado, lugares altos, etc.

Para isso novamente precisaremos de ajuda externa. Um bom dicionário bíblico, ou exegético, é fundamental. Comentários bíblicos também podem ser utilizados, mas com cautela. É preciso saber reconhecer os bons autores de escritores medíocres, ou de autores que seguem linhas teológico-doutrinárias questionáveis. Há quatro recursos ou instrumentos indispensáveis para uma exegese: dicionários bíblicos, um bom Manual bíblico, boas traduções da Bíblia e bons comentários bíblicos, escritos por autores confiáveis.

2.2. SEGUNDA TAREFA: HERMENÊUTICA

A hermenêutica cobre todo o campo da interpretação, incluindo a exegese. Porém, aqui, usaremos o termo hermenêutica de modo mais restritivo, significando a busca pela relevância contemporânea de textos antigos. Em outras palavras: o que o texto bíblico fala para nós, hoje?

Devemos ler a Bíblia de forma devocional. Mas também devemos ler a Bíblia para entender, aprender, e assim aplicar. O estudo da Bíblia certamente enriquecerá nossa leitura devocional. Assim, a hermenêutica apropriada começa com uma exegese sólida.

A razão pela qual devemos começar pela exegese é simples: o único controle apropriado da hermenêutica (interpretação) encontra-se no propósito original do texto bíblico. E somente chegamos a esse propósito original por meio da boa exegese. Senão, o leitor poderá dar qualquer significado a qualquer texto bíblico. Cada leitor terá sua própria “interpretação”. A subjetividade de cada “intérprete” seria a norma. Porém, a Bíblia é um livro objetivo, que possui uma interpretação objetiva e apropriada para cada texto, para cada uma das sessenta e seis obras que a compõem. Por isso é simplesmente essencial utilizar as ferramentas da exegese e da hermenêutica para chegar a um correto entendimento da mensagem bíblica.

Devemos chegar ao significado original do texto. Um texto não pode significar, hoje, o que jamais significou. O verdadeiro significado de um texto bíblico, para nós, hoje, é aquele que Deus se propôs originalmente que significaria quando o revelou. Esse é o nosso grande objetivo, a nossa tarefa como hermeneutas (intérpretes) da Bíblia.

3 – INSTRUMENTOS BÁSICOS

3.1. Traduções.

A Bíblia foi escrita originalmente em três idiomas: hebraico (na maior parte do Antigo Testamento), aramaico (idioma irmão do hebraico utilizado em partes de Daniel e Esdras e um versículo de Jeremias) e grego (em todo o Novo Testamento). Nem todos os leitores têm conhecimento desses idiomas. Isso significa que o primeiro instrumento básico do intérprete da Bíblia é uma boa tradução – ou melhor, várias boas traduções.

Ler uma tradução é ler uma interpretação. Ao utilizar somente uma tradução, o leitor fica comprometido com a interpretação daquela equipe específica de tradutores. E mesmo as melhores traduções da Bíblia podem conter imperfeições.

Qual tradução escolher? Simplesmente aquela que “eu gosto”? Precisamos conhecer alguns fatos sobre os manuscritos bíblicos, sobre a ciência da tradução e sobre as diversas traduções disponíveis em português, antes de escolher nossa “favorita”.

O Antigo Testamento possui, hoje, duas “famílias” principais de manuscritos: o Texto Massorético (TM) e os Manuscritos do Mar Morto (MMM).

Os massoretas eram os escribas judeus que padronizaram o texto hebraico do Antigo Testamento (c. 500-1000 d.C.). O TM que temos hoje baseia-se em manuscritos produzidos com cuidado reverente pelos escribas judeus ao longo de séculos. Recebe o apoio de traduções do Antigo Testamento (isto é, a Bíblia Hebraica) para outras línguas, especialmente a Septuaginta (LXX), versão grega datada dos séculos III e II a.C.

Outra família de manuscritos foi descoberta em 1947, a doze quilômetros ao sul de Jericó, por um jovem pastor árabe chamado Muhmmad adh-Dhib. Foi uma das maiores descobertas arqueológicas do século XX. Tratavam-se dos “Manuscritos do Mar Morto” (MMM). Dentre eles, havia rolos contendo livros do Antigo Testamento, que confirmaram a autenticidade dos manuscritos do TM. Praticamente todas as traduções da Bíblia em português utilizam o TM. As mais recentes (NVI, A21) também levam em consideração a LXX, os MMM e outras traduções antigas.

Existem mais de 5.000 manuscritos do Novo Testamento, que se dividem em duas “famílias” principais: o Texto Bizantino (também conhecido como Textus Receptus ou Texto Recebido) possui um número maior de manuscritos, porém mais recentes. Algumas das traduções da Bíblia em português que utilizam o Texto Bizantino são: Almeida Corrigida Fiel (ACF), da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil (SBTB); Almeida Revista e Corrigida (ARC), da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB); e a Edição Contemporânea de Almeida (ECA), da Editora Vida.

A segunda família de manuscritos do NT é conhecida como Texto Alexandrino (ou Texto Crítico ou ainda Texto Neutro). Possui poucos manuscritos, porém mais antigos. Sua maior característica é um texto mais enxuto e confiável. Fazem uso do Texto Alexandrino as seguintes traduções: Almeida Revista e Atualizada (ARA), da SBB; Nova Versão Internacional (NVI), da Sociedade Bíblica Internacional (SBI); Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), da SBB; e a recente Almeida Século 21 (A21), de Edições Vida Nova.

3.2. Dicionários.

Outra ferramenta indispensável para o intérprete da Bíblia são os dicionários. Não somente os dicionários bíblicos, mas é fundamental ter um excelente dicionário da Língua Portuguesa!

Quanto aos dicionários bíblicos, sugerimos os seguintes:

DAVIS, John. Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Editora Hagnos.

DOUGLAS, J. D. (ed.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova.

YOUNGBLOOD, Ronald F. Dicionário Ilustrado da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova.

3.3. Manuais Bíblicos.

Há no mercado brasileiro excelentes Manuais Bíblicos. Um manual desse tipo é uma obra de referência para a vida toda.

DOCKERY, David D. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Edições Vida Nova.

HALLEY, Henry. Manual Bíblico de Halley. São Paulo: Editora Vida.

UNGER, Merril Frederick. Manual Bíblico Unger. São Paulo: Edições Vida Nova.

3.4. Comentários Bíblicos.

Esta é a ferramenta mais delicada e a última que deve ser consultada. Há muitas coleções de comentários bíblicos disponíveis em português (o que é bom), porém algumas delas não são confiáveis, porque foram escritas por autores comprometidos com teologias alheias à fé cristã histórica. No entanto, há Editoras sérias e responsáveis em nosso país, que publicam obras de qualidade. Recomendo os comentários bíblicos publicados pelas seguintes editoras: Vida Nova, Shedd Publicações, Hagnos, Cultura Cristã, Editora Fiel, ABU (Aliança Bíblica Universitária), Editora Evangélica Esperança.

Todo estudante sério da Bíblia deve ler comentários, e jamais prender-se a um único autor. Há alguns fatores que devem ser levados em consideração antes de ler um comentário:

1º. O comentário deve ser exegético – o autor deve conhecer os idiomas originais da Bíblia e fazer uso deles, ao longo de sua obra.

2º. O autor deve comentar a respeito de todos os significados possíveis de determinados textos (especialmente os reconhecidamente difíceis!).

3º. O autor deve conhecer e expor os contextos histórico, cultural, geográfico, etc, de cada texto.

4º. O autor deve mencionar (geralmente no fim do livro) uma bibliografia razoável para aprofundamento dos estudos.

4 – GÊNEROS LITERÁRIOS DA BÍBLIA E SEUS ASPECTOS HERMENÊUTICOS – UM BREVE PANORAMA ILUSTRATIVO

4.1. Epístolas.

A literatura epistolar da Antiguidade é profusa. Milhares de epístolas foram encontradas, além daquelas contidas no Novo Testamento. A epístola é um gênero literário dirigido a um público – não se trata meramente de uma “carta” escrita para ser lida apenas por uma pessoa ou um pequeno grupo. As epístolas seguem em geral o seguinte esquema:

1. Nome do escritor.

2. Nome do destinatário.

3. Saudação.

4. Oração ou ação de graças ou doxologia (elemento variável).

5. Texto.

6. Saudação final e despedida.

O intérprete bíblico precisa levar em consideração que todas as epístolas são documentos de ocasião, isto é, foram escritas devido a um evento ou ocasião específicos, com um motivo ou propósito singular. São casuais, e dependem de uma série de fatores históricos, culturais, políticos, etc.

Tomemos como exemplo 1Coríntios. Para compreender corretamente essa epístola, devemos, em primeiro lugar, tratar de compreender adequadamente a situação pela qual estava passando a igreja de Corinto, bem como a cultura daquela cidade, sua história, características, etc. Precisamos utilizar os recursos acima descritos – dicionários, manuais bíblicos, comentários – para que possamos conhecer a Corinto antiga e suas peculiaridades.

Em segundo lugar, para o estudo ser eficaz devemos formar o hábito de ler toda a epístola, e fazê-lo muitas vezes. As epístolas eram lidas dessa forma, e não de modo fragmentado. É fundamental ler a epístola várias vezes. Ao ler, devemos observar e anotar. Alguns exemplos de anotações:

1. Quem são os destinatários (judeus, gregos, escravos, livres, seus problemas, suas atitudes, etc).

2. A atitude do autor (no caso de 1Co, Paulo. Com que propósito ele está escrevendo? Qual seu objetivo?).

3. As coisas específicas mencionadas referentes à ocasião particular dessa epístola (que situação era aquela?).

4. As divisões lógicas e naturais da epístola.

Precisamos perceber qual a natureza precisa de cada um dos problemas dos destinatários (em nosso exemplo, de Corinto). Para isso deveremos estudar o contexto histórico de Corinto, bem como o contexto literário da epístola. Aqui, devemos aprender a “pensar em parágrafos”. É essencial identificar a ideia central de cada parágrafo da epístola. Naturalmente, o uso de uma tradução adequada é importantíssimo. A NVI, sabiamente, utiliza a divisão correta para cada gênero literário da Bíblia. Utilizando uma tradução assim, o leitor não terá dificuldade alguma para identificar cada parágrafo. Devemos reconhecer, igualmente, as metáforas, ilustrações, figuras de linguagem, etc, empregadas pelo autor da epístola.

Devemos lembrar sempre da “regra de ouro”: um texto não pode significar para nós, hoje, o que nunca significou para seu autor ou para seus leitores originais.

Algumas passagens certamente permanecerão obscuras para o leitor. Afinal, as epístolas não foram escritas originalmente para leitores do século XXI. Futuras pesquisas poderão elucidar trechos problemáticos.

Há um abismo cultural de dois mil anos entre os escritores e leitores originais do Novo Testamento e nós, hoje. Não devemos jamais esquecer esse fato.

4.2. Narrativas do Antigo Testamento.

Mais de 40% do AT é narrativa. A narrativa é um relato verídico, a história de Deus. É a história da intervenção de Deus na vida das pessoas e através das pessoas ao longo dos séculos. Geralmente, a narrativa não traz um ensinamento direto, porém exemplifica o que é ensinado diretamente em outro lugar. Por exemplo: na história de Davi e Bate-Seba, não há um ensino sistemático sobre adultério e assassinato, mas o que aconteceu com Davi posteriormente, ao enfrentar as gravíssimas consequências de seus atos, ilustra e exemplifica o caráter hediondo do adultério e do homicídio.

Há alguns princípios para a interpretação das narrativas do AT:

1. Uma narrativa geralmente não ensina diretamente uma doutrina, somente ilustra o que é ensinado como doutrina em outra parte da Bíblia.

2. A narrativa nos informa o que realmente aconteceu, historicamente, não o que deveria ter acontecido. Registra igualmente os acertos e os erros dos homens. Há exemplos que devem ser seguidos, mas há outros que devemos evitar a todo custo.

3. Nem sempre somos informados pela narrativa se as ações de um determinado indivíduo foram boas ou más. Devemos julgar os fatos narrados a partir do ensino global das Escrituras.

4. Todas as narrativas são seletivas e incompletas. Muita coisa do que ocorreu foi omitida.

5. As narrativas não foram escritas para resolver questões teológicas.

6. Deus sempre é o herói de todas as narrativas bíblicas.

Conhecer o contexto histórico é simplesmente indispensável para interpretar corretamente as narrativas do AT. É preciso tomar muito cuidado para não “alegorizar” as narrativas, fazendo-as significar hoje o que jamais significaram. E lembre-se: não tente imitar nenhuma personagem bíblica. A história de José aconteceu com José. Jamais se repetirá com qualquer outra pessoa.

O mau uso das narrativas do AT é uma das características de boa parte das igrejas “evangélicas” atuais, especialmente as neopentecostais, em sua ânsia por extorquir o povo simples que as frequenta. Ao interpretar as narrativas do AT, precisamos levar em conta, sempre, o contexto global das Escrituras, especialmente a revelação maior e mais profunda encontrada no Novo Testamento.

4.3. Os Evangelhos: Uma história em quatro dimensões.

Havia diferentes comunidades que precisavam de uma história de Jesus. Marcos provavelmente foi o primeiro evangelho a ser escrito. Depois foi “ampliado” por Mateus e Lucas. Tempos depois, João também escreveu seu evangelho. Cada um deles é um testemunho de Jesus, de acordo com seu ponto de vista, voltado para as necessidades de seu próprio público. Para estudá-los, é preciso buscar conhecer o contexto histórico de Jesus, o contexto histórico de cada evangelista e de seu público original. E dentro de um evangelho há narrativa histórica, ensino doutrinário, parábolas, profecias, etc. Cada um desses gêneros literários deve ser interpretado de acordo com sua natureza.

Os evangelhos contêm notas biográficas sobre Jesus, porém não são biografias. Ele não relatam com detalhes a vida de Jesus Cristo, mas trazem os fatos dos quais necessitamos saber para a nossa salvação.

A primeira tarefa da exegese é estar consciente do contexto histórico. Para bem compreender os evangelhos, em primeiro lugar precisamos pesquisar a vida e os tempos de Jesus, bem como seu contexto religioso, cultural, social, político e econômico. Devemos igualmente pesquisar a respeito de cada evangelista: Mateus, Marcos, Lucas e João. Qual o objetivo de cada um deles ao escrever sobre Jesus? Quem eram seus leitores originais? Em que época e lugar cada evangelho foi escrito? Além disso, devemos conhecer os diversos gêneros literários que formam um evangelho, especialmente a parábola, gênero muito utilizado por Jesus em seus ensinos. Outros gêneros presentes nos evangelhos são o ensino, a ordenança, a narrativa e passagens escatológicas.

A Bíblia é o mais importante livro de todos os tempos; é a Palavra de Deus. Ler a Bíblia de forma irresponsável e descuidada é uma tragédia. É uma das calamidades que assolam a igreja evangélica brasileira na atualidade. É uma das causas pelas quais muitas “igrejas”, no Brasil de hoje, não são verdadeiramente igrejas, no sentido neotestamentário do termo. Uma das marcas de uma verdadeira igreja é o estudo diligente e a interpretação correta da Palavra de Deus.

Fonte: FEE, Gordon; STUART, Douglas. La Lectura Eficaz de la Biblia. Miami: Vida, 1985.

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