domingo, 22 de abril de 2012

SEM FALSIFICAR A PALAVRA

Por J. C. Ryle.

"Ao contrário de muitos, não negociamos a palavra de Deus visando lucro; antes, em Cristo falamos diante de Deus com sinceridade, como homens enviados por Deus" (2Coríntios 2.17, NVI). 

Não é pouca coisa falar a uma congregação de almas imortais sobre as coisas de Deus. Mas a responsabilidade mais importante de todas é falar a um grupo de ministros do Evangelho como o que vejo diante de mim neste momento. Atravessa-me a mente a terrível sensação de que uma só palavra equivocada que possa arraigar-se em algum coração frutifique e no futuro, desde algum púlpito, possa causar danos cujo alcance desconhecemos.

Mas há ocasiões em que a verdadeira humildade pode ser vista não tanto nas confissões em  voz alta de nossa fraqueza, mas sim quando esquecemos verdadeiramente de nós mesmos. Desejo, portanto, esquecer meu ego nesta ocasião ao dirigir minha atenção a esta passagem das Escrituras. Se não digo muita coisa sobre meu sentimento de insuficiência, creia que não é porque não o tenha.

A expressão grega traduzida como "negociamos" deriva de uma palavra cuja etimologia não encontra consenso entre os lexicógrafos. Refere-se ou a um comerciante que não leva seu negócio honradamente ou a um produtor de vinhos que adultera o vinho que põe à venda. Tyndale a traduz como: "Não somos como aqueles que mutilam e modificam a Palavra de Deus". Na versão Rhemish lemos: "Não somos como muitos, que adulteram a Palavra de Deus". Na Versão Autorizada inglesa, numa nota à margem, lemos: "Não somos como muitos, que utilizam com engano a Palavra de Deus".

Na construção dessa frase, o Espírito Santo inspirou Paulo para que declarasse a verdade de forma negativa e positiva. Esse tipo de construção adiciona claridade ao sentido das palavras e as torna inequívocas, além de intensificar e fortalecer a asseveração nelas contida. Dão-se casos de construções similares em outras três extraordinárias passagens bíblicas, duas em referência ao batismo e uma com respeito à questão do novo nascimento (cf. Jo 1.13; 1Pe 1.23; 3.21). Percebemos, portanto, que nosso texto contém lições tanto positivas quanto negativas para a instrução dos ministros de Cristo. Umas coisas devem ser evitadas. Outras, devem ser procuradas.

A primeira lição negativa é uma clara advertência contra a falsificação ou a utilização enganosa ou "comercial" da Palavra de Deus. O Apóstolo diz que "muitos" procedem dessa forma, assinalando que mesmo em sua época havia alguns que não tratavam a verdade de Deus com honra e fidelidade. Aqui temos uma resposta contundente àqueles que afirma que a "igreja primitiva" era de uma pureza exemplar. O mistério da iniquidade já estava operando. A lição é que devemos evitar qualquer asseveração falsa com respeito à Palavra de Deus, a qual fomos encarregados de pregar. Não devemos acrescentar-lhe nada. Não devemos tirar-lhe nada.

Muito bem, quando pode-se dizer que estamos falsificando a Palavra de Deus na atualidade? Quais são os recifes e os bancos de areia que devemos evitar se não quisermos fazer parte dos "muitos" que manipulam enganosamente a verdade de Deus? Algumas indicações a esse respeito podem ser mui úteis.

Falsificamos a Palavra de Deus da forma mais perigosa quando lançamos qualquer sombra de dúvida sobre a inspiração plena das Sagradas Escrituras. Isso não é meramente corromper o vaso, mas sim contaminar toda a fonte. Isso não é meramente poluir o cântaro, mas sim envenenar todo o poço. Uma vez enganados neste ponto, toda a essência de nossa religião estará em perigo. É uma fissura no fundamento. É um verme devorador na raiz de nossa teologia. Uma vez que permitirmos que esse  verme ataque a raiz, logo o tronco, os galhos e as folhas começarão a decair pouco a pouco. Sou bem consciente de que a questão da inspiração está rodeada de certas dificuldades. Mas em minha humilde opinião, apesar de certas questões que não podemos resolver agora, a única postura adequada e segura que podemos adotar é esta: que cada capítulo, cada versículo e cada palavra da Bíblia são inspirados por Deus. Jamais deveríamos abandonar nenhum princípio teológico, como também não abandonamos os princípios científicos devido a aparentes dificuldades que não podemos eliminar na atualidade.

Permitam-me mencionar uma analogia sobre esse importante axioma. Aqueles que estão familiarizados com a astronomia sabem que antes do descobrimento de Netuno havia dificuldades que preocupavam muito a maioria dos astrônomos a respeito de aberrações na órbita do planeta Urano. Essas aberrações confundiam as mentes dos cientistas e alguns deles indicaram que poderia ser demonstrado, por meio delas, que o sistema newtoniano não era correto. Mas, naquela época, um conhecido astrônomo francês chamado Leverrier leu, ante a Academia de Ciências, um artigo no qual estabelecia o grande axioma segundo o qual não seria apropriado renunciar a um princípio científico por causa de algumas dificuldades que não podiam, no momento, ser explicadas. Ele disse: "Não podemos explicar as alterações da órbita de Urano por enquanto. Mas estamos certos de que mais cedo ou mais tarde demonstraremos que o sistema newtoniano está correto. Talvez alguém descubra algo um dia que prove que essas alterações orbitais de Urano são perfeitamente explicáveis, sem descartar o sistema de Newton". Alguns anos depois, os angustiados olhos dos astrônomos descobriram, finalmente, o último grande planeta: Netuno. E foi comprovado que as alterações na órbita de Urano eram causadas pela presença de Netuno, e que o astrônomo francês havia estabelecido um princípio científico sábio e correto: afinal, Newton continuava certo. A aplicação desta história é óbvia.

Tenhamos o cuidado de não renunciar a nenhum princípio teológico básico. Não renunciemos ao grande princípio da inspiração plena das Escrituras por causa de algumas dificuldades que possam surgir diante de nós. Chegará o dia em que tais dificuldades serão resolvidas. Enquanto isso, podemos estar certos de que as dificuldades que enfrentam quaisquer outras teorias da inspiração são muito maiores do que as que nós enfrentamos.

Em segundo lugar, falsificamos a Palavra de Deus quando fazemos afirmações doutrinárias equivocadas. Fazemos isso ao acrescentar à Bíblia as opiniões da Igreja ou de "Pais" da Igreja como se tivessem a mesma autoridade das Escrituras. Fazemos isso quando subtraímos coisas da Bíblia a fim de agradar aos homens ou quando, por um sentimento de falsa liberalidade, evitamos qualquer afirmação bíblica que possa parecer radical, dura ou estreita. Falsificamos a Palavra de Deus quando tentamos suavizar qualquer coisa que se ensine com respeito ao castigo eterno ou à realidade do inferno. Fazemos isso quando elevamos certas doutrinas a alturas desproporcionais. Todos temos doutrinas favoritas e nossas mentes estão constituídas de tal forma que é difícil ver claramente uma verdade sem esquecer que existem outras verdades igualmente importantes. Não devemos esquecer a exortação paulina de ministrar "de acordo com a medida da fé". Falsificamos a Palavra de Deus quando exibimos um desejo excessivo de encobrir, defender ou maquiar doutrinas como a da justificação pela fé sem as obras da Lei por medo da acusação de antinomismo; ou quando fugimos de afirmações sobre a santidade e a santificação por medo de sermos considerados legalistas. Falsificamos a Palavra de Deus quando evitamos utilizar a linguagem bíblica ao mencionar as doutrinas. Temos a tendência de evitar termos como "novo nascimento", "eleição", "adoção", "conversão", "segurança" e substituí-los por expressões inócuas, como se tivéssemos vergonha da linguagem clara e direta da Bíblia.

Em terceiro lugar, falsificamos a Palavra de Deus quando a aplicamos de forma equivocada. O fazemos ao não discernir os diferentes tipos de pessoas em nossas congregações, quando nos dirigimos a todos como se fossem salvos em razão de seu batismo ou de sua associação com a Igreja e não traçamos uma linha entre os que têm o Espírito e os que não O têm. Não somos propensos a deixar de lado os chamados claros aos não convertidos? Quando temos 800 ou 2000 pessoas diante de nosso púlpito e sabemos que uma grande parte delas não é salva, não corremos o risco de manejar defeituosamente a Palavra de Deus em nossas exortações práticas, ao não deixar suficientemente claro o que a Bíblia diz aos diversos tipos de pessoas que formam a nossa congregação? Falamos claramente aos pobres, mas falamos claramente também aos ricos? Falamos claramente ao nos dirigir às classes altas? Este é um ponto respeito ao qual temo que necessitamos examinar nossas consciências.


Passemos agora às lições positivas do nosso texto: "antes, em Cristo falamos diante de Deus com sinceridade, como homens enviados por Deus".


Deveríamos ter o propósito de falar "com sinceridade" - sinceridade de propósito, de coração e de motivações - e de falar como quem está profundamente convencido da verdade que proclama, como quem possui fortes sentimentos e um terno amor por aqueles a quem se dirige.


Deveríamos ter o propósito de falar "como homens enviados por Deus". Deveríamos nos esforçar para nos sentir como homens que foram encarregados de falar em nome de Deus e em Seu lugar. Em nosso pavor de cair no romanismo, frequentemente esquecemos as palavras do Apóstolo: "Honro o meu ministério". Esquecemos quão grande é a responsabilidade do ministro do Novo Pacto e quão terrível é o pecado daqueles que, quando um verdadeiro ministro de Cristo se dirige a eles, recusam-se a receber a sua mensagem e endurecem seus corações.


Deveríamos ter o propósito de falar "diante de Deus". Não devemos perguntar a nós mesmos  o que as pessoas pensam de nós, mas o que Deus pensa de nós. Latimer recebeu, em certa ocasião, o chamado para pregar diante de Henrique VIII e começou seu sermão da seguinte forma: "Latimer! Latimer! Lembre-se de que você está falando diante do excelso e poderoso rei Henrique VIII; diante daquele que tem poder para enviá-lo à prisão, diante daquele que tem poder para ordenar que você, Latimer, seja decapitado. Latimer, tenha cuidado para não dizer nada que ofenda os ouvidos reais!". Então, depois de uma pausa, Latimer prosseguiu: "Latimer! Latimer! Lembre-se de que você está falando diante do Rei dos Reis e do Senhor dos Senhores, diante d'Aquele perante quem o próprio rei Henrique VIII deverá apresentar-se um dia; diante d'Aquele que você mesmo deverá prestar contas um dia! Latimer, seja fiel ao Senhor e proclame toda a Palavra de Deus!". Oh! Que seja este o espírito com que nos retiramos de nossos púlpitos: não preocupados pensando se os homens ficaram satisfeitos ou insatisfeitos, nem se estarão nos elogiando ou nos difamando; mas preocupados, sim, com o testemunho de nossa consciência de que temos falado diante de Deus.


Por último, deveríamos ter o propósito de falar "em Cristo". O significado dessa expressão não está claro. Grotius diz o seguinte: "Devemos falar em Seu nome, como embaixadores de Cristo". Mas Grotius tem pouca autoridade. Beza diz: "Devemos falar sobre Cristo, a respeito de Cristo". Isso é boa doutrina, mas dificilmente representa o significado exato dessas palavras. Outros dizem: devemos falar como unidos a Cristo, como aqueles que receberam a misericórdia de Cristo e cujo único direito de dirigir-se aos demais provém de Cristo. Outros dizem: devemos falar através de Cristo, com a força de Cristo. Talvez esse seja o melhor sentido. A expressão no grego corresponde à de Filipenses 4.13: "Tudo posso naquele que me fortalece". Seja qual for o significado que atribuímos a essas palavras, uma coisa é bem clara: devemos falar em Cristo, como quem recebeu misericórdia; como quem não deseja exaltar-se a si mesmo, senão ao Salvador; como quem não se preocupa com o que os homens possam dizer, mas somente com que Cristo seja glorificado e magnificado em seu ministério.


Em resumo, todos deveríamos nos perguntar: Alguma vez manipulamos enganosamente a Palavra de Deus? Compreendemos o que é falar da parte de Deus, diante de Deus e de Cristo? Permitam-me fazer-lhes perguntas diretas. Há algum texto na Palavra de Deus que não conseguimos expor? Há alguma afirmação na Bíblia que evitamos falar à nossa congregação não porque não a entendemos, mas porque contradiz alguma ideia que temos a respeito da Verdade? Se é assim, perguntemos a nossas consciências se estamos manipulando enganosamente a Palavra de Deus.


Há algo na Bíblia que estamos deixando de lado porque tememos parecer duros e ofender parte de nossa audiência? Há alguma afirmação, seja doutrinária ou prática, que mutilamos ou desmembramos ou escondemos? Se é assim, estaremos tratando com a Palavra de Deus com a honra devida?


Oremos para que sejamos guardados de falsificar a Palavra de Deus. Que nem o temor ao homem nem o favor dos homens nos induzam a rejeitar, evitar, mudar, mutilar ou maquiar texto algum da Bíblia. Sem dúvida, quando falamos como embaixadores de Deus, devemos fazê-lo com santa ousadia. Não temos motivo algum para nos envergonhar de qualquer afirmação que façamos desde nossos púlpitos sempre que esteja de conformidade com as Escrituras. Com frequência tenho pensado que um dos grandes segredos da maravilhosa honra que Deus tem colocado sobre um homem que não pertence à nossa denominação (refiro-me ao Sr. Spurgeon) é a extraordinária coragem e confiança com que ele fala no púlpito às pessoas a respeito de seus pecados e do estado de suas almas. Não se pode dizer que ele o faça com medo de alguém ou para contentar alguém. Parece dar o que corresponde a todo tipo de ouvinte: ao rico e ao pobre, ao nobre e ao camponês, ao erudito e ao analfabeto. Trata a cada um com claridade, segundo a Palavra de Deus. Creio que essa mesma coragem tem muito a ver com o sucesso que Deus tem dado ao seu ministério. Não nos envergonhemos de aprender uma lição dele nesse aspecto. Vamos aos nossos púlpitos e façamos o mesmo.

John Charles Ryle (1816-1900), "um homem de granito, com o coração de uma criança", foi o primeiro bispo de Liverpool, escritor prolífico e defensor do caráter protestante da Igreja da Inglaterra. Mais de 100 anos depois de sua morte, seus sermões e escritos ainda falam poderosamente aos cristãos de hoje. O sermão acima foi pregado em Weston-super-Mare, em agosto de 1858, por ocasião do Aggregate Clerical Meeting, sob a presidência do arquidiácono Law, registrado em notas taquigráficas por um dos ouvintes e mais tarde redigido em língua inglesa para publicação.

Fonte: RYLE, J. C. Advertencias a las Iglesias. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2003, pp. 28-35.

Traduzido do espanhol por F.V.

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